terça-feira, janeiro 20, 2004

A música

“Estou sozinha!
A música cresce de tom, ondula, é bela... mas eu estou sozinha. A dança pára sempre porque falta alguém que me acolha em seus braços depois de uma pirueta. Os lábios entreabrem-se esperando encontrar no ar algo que os complete. Todo o meu corpo está incompleto porque faltas tu.

Seria uma carta de amor se tu fosses alguém com um rosto e um corpo definidos, e não só essa vontade do outro, daquele que comigo fará um só. O meu destino é deambular pela vida procurando nos olhos com que me cruzo o meu próprio ser. Só serei eu quando te encontrar. Quando for mulher completa nos braços de um homem, ouvido amigo de lábios ardentes, ombro companheiro das nossas dores. Só serei eu quando tu fores tu, quando não fores nenhum desses substitutos que eu te arranjo.

O amor é o sentimento ideal mas que não se sente puro. Apenas misturado com raivas, ódios, piedade, compaixão e, quantas vezes, indiferença.

Frequentemente o que importa é ter alguém compreensivo, amigo, também amante, e não necessariamente o verdadeiro amor. Quantas vezes nos deixamos satisfazer por personificações do amor verdadeiros quantas vezes passamos a vida toda partilhando-a com imitações.

Se a música se elevasse e as correntes que me prendem se dissolvessem, eu seria um pássaro que se livrou da gaiola, seria novamente livre. Mas a música teima em manter o ritmo, consonância, teima em não desafinar de tão apegada às normas que está.

Sou assim pássaro enjaulado, ainda que em gaiola de oiro. Não posso seguir com o vento, planando ao sabor da sensação de voar, de ser livre, de ser eu e de saber quem sou.

Mas a música é bela e eu não posso parar de chorar. As lágrimas são gritos cristalinos e salgados. São os elos das correntes quebradas. São minhas. E eu sou lágrimas porque as lágrimas correm sem razão aparente, quando querem. Na minha imaginação eu sou a lágrima de um ser superior que só agora se desprendeu para iniciar a viajem rumo à vida, rumo ao ser.

Só agora eu sou, quando a música se torna cada vez mais forte, e eu tremo, balanço e ondulo. Só agora sou eu quando os tambores marcam o ritmo da vida, o ritmo do amor. Tu, que não tens rosto, ama-me até à exaustão. Beija-me como se fosse esta noite a última vez, porque é a primeira, porque é a única como únicos são todos os momentos da vida.

Tu, que eu amo sem conhecer, que espero a presença, não me abandones sem nunca me teres feito sentir a plenitude de ser mulher.

Conduz-me nesta dança exótica em que cada gesto é uma palavra, em que cada expressão é um sentimento que aflora e em que cada momento é completo.

Guia o meu corpo ao som da música, ama-me ao ritmo do som e beija-me em pensamento.”



Fui desempoeirar este texto no meu baú.
Ai! Adolescência sonhadora!
Tantos anos, tanta diferença no ser.

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