Resolvi ir buscar um texto antigo ao baú.
Baú!!!! Megalomania minha …
Pasta … melhor “folder”, que cada vez mais as ideias ficam arquivadas em bites e bytes.
“Às vezes somos cativados por pormenores, pequenas coisas que nos agradam, e que acabamos a valorizar mais do que efectivamente o merecem.
A caneta que uso para escrever, reparei agora, está quase a acabar, e pensei, tenho que arranjar outra para a substituir. Pensamento normal, não fora o estojo pousado a meu lado ter mais quatro canetas de cores variadas. E se o vermelho pode resultar contrastante demais, qualquer uma das outras é uma cor utilizada correntemente em escrita, verde, preto e azul.
Esta caneta com que agora escrevo, de um azul celeste, de tinta em gel, de bico fino, movimento fácil, prestes a acabar a sua vida útil, parece-me mais própria a traçar gatafunhos no papel que qualquer uma das outras.
Fico presa a pequenos pormenores, como a cor da tinta, a textura do papel, a forma do caderninho que uso, o tipo de encadernação do mesmo.
Uns inspiram-me mais do que outros, com alguns identifico-me melhor do que com os restantes.
Não deveria ter efeito nenhum sobre a escrita, o papel em que é feita, nem a cor da caneta que lhe dá forma. E talvez, em verdade não tenha, objectivamente, rigorosamente, nenhuma influência directa.
O criar de hábitos, de novos hábitos tem muitas vezes de ser rodeado de rituais, e talvez a escolha da caneta faça parte de um conjunto de actos que pretenderam criar um espaço para a escrita, não rígido, não determinado pelo local onde estivesse, mas simplesmente pela vontade de o fazer.
E assim, passou a ser presença na minha carteira, um pequeno bloco, formato A6 ou aproximado, e pelo menos uma caneta que proporcione uma escrita agradável, fluida, rápida, como as ideias que pululam na minha cabeça.
Se este simples facto teve alguma influência?
Claro que teve, porque passei a ter sempre disponível um suporte para prender as minhas ideias antes que se volatilizem, ou simplesmente para brincar com formas, pensar desenhando, experimentar texturas.
Neste último ano, quando passei a carregar sistematicamente com os meus blocos, escrevi mais do que em vários dos anos anteriores, desenhei mais do que na década precedente.
Talvez um dia, estes blocos que com o tempo eu terei que ir numerando, me permitam regredir e encontrar-me com recordações adormecidas, de visitar o meu passado com a distância de quem observa a vida de outrem.
Quando releio coisas antigas, três ou quatro anos são suficientes, tenho surpresas porque já não recordo a maior parte dos factos, porque já não identifico formas de estar e de pensar.
O tempo tem o dom de esbater a cor de tudo, cobrir de névoa e finalmente de esquecimento.
As recordações que perduram já são mais uma produção da nossa mente, que retratos efectivos do que se passou. Quanto mais recordada uma situação mais ela se afasta do que efectivamente foi. Chegamos a uma altura em que o que recordamos já não é o facto em si mas o conjunto de recordações que fomos tendo dele, ao longo do tempo.
Já não recordo o banho que tomei em miúda, na fonte da aldeia em dia de festa, o que recordo são já as imagens criadas com o tempo, de cada vez que esse banho foi mencionado pelos outros ou pensado por mim.
Nesta altura os cenários já se misturam e sei que no local onde eu recordo o banho, nunca existiu uma fonte, mas mesmo assim é aí que eu me vejo, nua sob a bica de água fresca, como se me tivesse conseguido desmultiplicar e ser simultaneamente observadora exterior e actriz principal.
O que eu tenho na recordação já não é o que aconteceu mas a imagem mental que eu criei.
Um testemunho escrito na altura, e ser verdadeiro e não escrito em busca de um qualquer efeito, poderá um dia ajudar-me a recordar o que foi a minha vida nestas alturas.
A esferográfica continua o seu percurso em direcção à extinção. Quando nem mais uma letra sair do seu bico terei de procurar outra cor que me atraia, que contraste com o tom cinza azulado do papel.
Presa a pequenos detalhes continuarei a estar sempre.”
30-08-2003
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