Os dias continuavam iguais uns aos outros, mas agora uns já eram mais iguais que outros, tinha mais uma companhia que fazia a diferença. As portas do armário, agora com o vidro e cartolina colada, devolviam-lhe uma imagem de alguém que ela não queria reconhecer mas que lhe parecia familiar. Costumava agora, ter com essa imagem, longas conversas sobre tantos e tão importantes assuntos. Ela não se aventurava a dar-lhe opiniões, nem tão pouco lhe respondia com palavras, mas escutava-a atentamente, interessada em tudo o que dizia, umas vezes concordando, outras vezes entrando em desacordo, não que lho dissesse directamente, mas Carolina conseguia ler isso tudo nas expressões que a imagem fazia.
Os dias passaram a ser feitos ao ritmo dessas conversas, sempre ansiosa que a passassem da cama para a cadeira ou para o sofá, para que pudesse continuar com o assunto do dia anterior, conversa geralmente interrompida pela entrada da mãe que nunca entenderia tamanha intimidade. Tinha finalmente uma amiga, a quem confiava tudo, os seus segredos, os seus anseios, a forma como a vida a magoara, lhe retirara os sorrisos e os sonhos.
Tinha-lhe contado tudo e nunca em seus olhos tinha lido compaixão ou pena, cada qual carrega um fardo vida fora, cada um achando que o do outro é mais leve ou menos volumoso, mas haveria certamente quem carregasse um maior que o seu. Sempre lhe leu força no olhar, força e admiração, e isso sempre lhe deu mais energia para continuar.
Mas o dia chegou em que o vidraceiro entrou, contente, porta adentro com os vidros novos. Carolina ainda tentou dizer à mãe que deixasse assim, que já se habituara, que lhe iria parecer estranho o branco pálido dos vidros antigos de volta. Mas a mãe não aceitou o argumento, para ela era uma questão de símbolos. Aquele armário representava o seu casamento, que ela queria que se mantivesse forte e belo como no primeiro dia, como no tempo em que os dois se endividaram para se darem a um luxo merecido. Claro que não foi o argumento por ela utilizado, falou antes dos vidros já comprados, do dinheiro já gasto, do estilo do armário, do valor do mesmo.
Carolina viu a cartolina a ser descolada das portas de vidro e a sua amiga perdendo a força da imagem, ficando como uma ténue lembrança, sobre o vidro ainda montado. Com os vidros novos colocados a felicidade da mãe contrastava com o abatimento de Carolina.
Porque lhe tinham retirado a amiga que lhe servia de confidente, com quem poderia agora extravasar seus sentimentos. Ela não estava louca, sabia que a hipótese de essa amiga ser o reflexo de outro ser era remota, sabia que essa amiga era certamente uma invenção sua para passar o tempo, mas precisava de algo para manter a aparência de realidade, um vidro que devolvia uma imagem, palavras que não se perdiam no ar porque uma expressão lhes respondia.
Carolina ficava cada dia mais triste porque precisava desabafar e não tinha com quem, precisava contar do desaparecimento da sua amiga, mas com quem, senão com ela, poderia Carolina referir tal facto. Sentia-se presa, amordaçada, muito mais do que a sua condição física lhe impunha.
Tinha uma saudade imensa da imagem, de todas as características que se habituara a atribuir-lhe. Podiam não acreditar, mas para ela, não era um reflexo, não era uma imagem, era uma pessoa pela qual tinha desenvolvido uma amizade forte, uma cumplicidade imensa. Há quem o faça por palavras, por cartas e fotos trocadas à distância, há quem o faça por e-mails, trocados com gosto e carinho, ela tinha-o feito por um reflexo num vidro na porta de um armário.
E sentia-se triste, sentia-se só, porque a sua amiga não estava lá mais, para lhe fazer companhia, para escuta-la, tinha lhe sido retirada sem que ela pudesse fazer nada e por isso Carolina sentia-se roubada, enganada. Já não era uma criança, já não se podia por a falar com bonecos. Era irónico mas era verdade, era assim que se sentia. Com as bonecas que se conservavam no quarto nunca poderia ter uma conversa séria. Quem é que no seu perfeito juízo, iria falar de sentimentos e problemas com uma Barbie?
O reflexo no vidro era o que ela quisesse fazer dele, e ela fez dele uma amiga querida, daquelas que na vida toda se tem o máximo duas, isto tinha ela lido numa revista, daquelas que nos compreendem mesmo quando estamos calados, que nos olham e que sabemos que poderemos contar sempre com o seu apoio. Uma amiga que poderia esperar de si também lealdade, compreensão, carinho imenso.
Carolina tinha agora muito tempo para pensar, sempre o tivera, mas agora ainda mais depois que as conversas se findaram. Pensava que mais importante do que o que os sentidos nos dizem é o que a nossa mente quer acreditar. Que se tinha entregue aquela amizade como se fora real, e não se arrependia. O que aquelas conversas tarde fora lhe tinham dado já não lhe poderia ser tirado, a companhia, o carinho do olhar da imagem, e sobretudo a reflexão conjunta, que lhe tinham permitido conhecer-se melhor, aceitar tudo o que lhe sucedera.
Tinha pena de não ter havido uma despedida, uma última conversa, um último olhar, uma explicação. Queria dizer à imagem o quanto lhe tinha feito bem, precisava de lhe dizer que sempre estivera consciente da situação insólita, que se confidenciara a sua vida o fizera por sua conta e risco, porque precisava de o fazer, que nunca lhe exigira nada, que o fizera por si, para se libertar, para exorcizar as suas mágoas. Não tivera direito a esse adeus, restava-lhe apenas imaginar como poderia ter sido.
E esperava, pacientemente, que um dia alguém se descuidasse com a cadeira e partisse de novo o vidro do armário.
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Este conto é dedicado às relações fortes que se estabelecem entre pessoas que nunca se fitaram olhos nos olhos, cuja única prova da sua mútua existência são palavras, seus reflexos em telas ou papéis. É dedicado aos amigos de quem não conheço as feições.