quinta-feira, março 25, 2004

Carolina (I)

A doença tinha-a confinado ao espaço do quarto, dias passados entre a cama e o sofá, uma vista distante de céu, nuvens e copa de árvores, um rádio que lhe trazia notícias de um mundo que ela já não reconhecia, algumas visitas, poucas, e que cada vez eram mais espaçadas e mais breves. Os assuntos deixaram de existir. As amigas de outrora agora tinham filhos, casas, maridos, empregos, vidas completas e repletas de interesse. A sua era passada entre quatro paredes, duas janelas e duas portas.

A revolta já tinha dado lugar à resignação, a esperança ao desalento. Nada mais havia a fazer do que passar o tempo contando momentos, desfiando minutos, tentando encontrar relações entre eventos, tentando adivinhar a sucessão de acontecimentos para assim se distrair.

Havia um pássaro que vinha pousar num ramo que balouçava bem fora da janela. Costumava aparecer à hora do pequeno-almoço, umas vezes antes da bandeja entrar pelas mãos da Rosana, outras vezes logo depois. Costumava fazer apostas consigo, dia após dia, tentando adivinhar a hora em que o pássaro iria cantar a primeira nota. Já tinha acertado algumas vezes, mas bem poucas, comparadas com as que se enganara largamente.

Assim tinha que ser a sua postura para vencer o tédio dos dias sempre iguais. Tinha que ser imaginativa, libertar-se do corpo que a prendia imóvel, e passear solta por sonhos, por paisagens abertas, linhas de horizonte difusas, por espaços tão amplos quanto o seu quarto lhe parecia diminuto, encerrado, voltado sobre si próprio.

Os dias sempre iguais tinham ocasionalmente uma alteração de rotina, algum facto novo que lhe causava uma emoção imensa por mais simples que fosse. A janela mal fechada que deixa o vento penetrar e brincar com as cortinas fazendo-as parecer oceanos agitados, o pássaro que um dia se atreveu a pousar no peitoril da janela e a testar a resistência da vidraça com o bico, a cadeira que foi encostada com demasiada força à porta do armário e partiu o vidro fosco com cercadura grega que a sua mãe tanto gostava. Fora uma peça namorada tempos a fio até ser possível juntar o dinheiro que a mesma custava. Um luxo, tinha dito o pai, e repetia agora a mãe, mas que ambos mereciam.

O vidro partido da porta do armário causou agitação na casa. Não seria fácil substitui-lo, o desenho da cercadura em transparente já não se fazia a não ser por encomenda. Alguém sugeriu que era uma boa altura para mudarem a decoração, mas a mãe não concordou, não abdicaria do seu armário, teria que ter arranjo.
Foi chamado o vidraceiro que sugeriu que montassem dois vidros transparentes, dos mais baratos, enquanto se tentava, pelo vidro sobrevivente, mandar fazer um novo, melhor seria fazer o par, avisou ele, que assim ficariam iguais o que de outra forma não poderia garantir.

E assim ficou decidido e assim foi feito. Carolina assistia a toda esta azáfama sentada, como sempre, no seu sofá, divertindo-se com a dificuldade do vidraceiro em tirar as medidas do vidro partido, que a porta, de cada vez que abria e fechava, mudava de tamanho, dizia ele. Talvez fosse verdade, talvez fosse uma porta mágica colocada ali por algum mago para que o trabalho demorasse mais tempo e assim ela tivesse mais companhia, uma companhia diferente.

Já não se lembrava de ver o seu quarto com tanta animação. O vidraceiro decidiu que não seria uma porta de armário que o deixaria ficar mal e fez um molde em cartão, que montou no caixilho vazio, abrindo e ficando a porta repetidas vezes. Agora sim, poderia dar as medidas por concluídas. Mais tarde viria montar os vidros provisórios, que já faltava pouco, era só um pouco mais de incómodo.

Apeteceu-lhe dizer que não incomodava, mas enquanto decidia se abria ou não a boca, já ele tinha saído porta fora, deixando um “Bom dia, Menina” suspenso no ar.

Vidros provisórios montados e mais uma celeuma se levantava. Os vidros transparentes deixavam ver o conteúdo do armário, assim não poderia ser, dizia a mãe. Já o vidraceiro se imaginava a ter que retirar aqueles vidros e a ter de colocar uns opalinos quando o pai, sempre bastante prático, arranjou a solução. Colava-se uma cartolina preta pelo interior, veriam como ficaria bem.

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