IV
Passei os últimos 3 dias num descanso a que me forcei. Forçada, não porque o descanso não me agradasse, mas porque a mente livre facilmente se enche de pensamentos, de recordações, de saudades, e era disso que eu gostaria de fugir. Refugiei-me nos livros. Peguei num dos livros que andava perdido na mala do carro e retomei a sua leitura. Já quase não recordava as poucas linhas já lidas, pelo que preferi começar do início, novamente.
“Um Rio Chamado Tempo, uma Casa chamada Terra”, assim se chamava o livro de Mia Couto.
O título sempre me tinha seduzido, era daquelas expressões que poderiam ter saído da minha cabeça, tivera havido inspiração para tanto, tal era a forma como me identificava com o mesmo. Entre um capítulo e o outro ainda me perdia facilmente em pensamentos, recordações próximas e distantes.
“A saudade é uma ferrugem, raspa-se e por baixo, onde acreditamos limpar, estamos semeando nova ferrugem” (Mia Couto). Li e não pude deixar de concordar.
Depois de ter deixado a colina e de novo me ter feito à estrada procurava sitio onde jantar, que a viagem fora longa e eu não tinha comido nada desde o almoço simples na área de serviço da Auto-estrada, já lá iam umas boas horas. As esperanças eram poucas porque parecia que me encontrava perdida em terras desertas de gentes. Vi uma tabuleta castanha, daquelas que identificam o turismo rural e resolvi arriscar, ainda que a mesma marcasse 15 km de desvio. Revelou-se uma boa decisão, a casa de pedra de granito solta cativava, e felizmente ainda tinham quartos vagos. E jantar, indaguei eu. Geralmente só com reserva prévia, que a cozinheira vinha de fora, mas tinha sorte, hoje ela estava lá, e como era só eu, alguma coisa se deveria poder arranjar.
Fiquei alojada numa pequena casa de pedra, encravada na encosta a meia cota entre a casa grande e o rio, recuperada do que fora, provavelmente, um abrigo de pastor. O acesso era íngreme, de tal forma que duvidei que o meu carro aguentasse a inclinação. Podia ter ficado na casa grande, mas o pitoresco do abrigo cativou-me, isso, e o isolamento. Com todas as luzes apagadas, sem cidades próximas que contaminassem o céu, o brilho das estrelas era mais forte do que nunca, as constelações mais nítidas, tivesse eu conhecimentos para as identificar. Pelas ursas me ficava, uma maior e outra menor, como toda a gente sabe.
Sem televisão, sem rádio, por companhia unicamente os livros que comigo sempre andam. O serão foi longo e de leitura, e a noite de sonhos agitados, confundindo a minha vida com as vidas narradas no livro. O papel das cartas do livro e o da tua carta misturavam-se, fundiam-se, e assim acordei, de madrugada ainda, sentindo que era imperativo saber o que havias escrito, porque lá estariam as revelações que me iriam guiar neste ritual que me cabia a mim dirigir. Não consegui conciliar o sono, senti a humidade que antecede o amanhecer, vi o sol nascendo sobre os montes, os raios que brincam na cortina de árvores, as longas sombras que riscam o solo e a cor dourada e quente que a pedra adquire, quase parecendo que o fogo a lambe, delicadamente.
Com o dia avançando, a sensação de urgência perdeu a sua força, mas não se extinguiu. Voltar a casa para levantar a carta era assumir claramente a derrota e o meu orgulho não me permitia. Fazer a carta vir até mim, isso sim, seria uma solução de compromisso.
Peço informações, sobre qual a estação de correios mais próxima, 30 km mas se quisesse eles colocariam a carta no correio, não era isso, necessitava de um reencaminhamento de correspondência, isso ainda seria mais simples, podiam fazer o seu pedido por fax, e quando fossem à cidade, se lhe desse o postal assinado, elas tratariam de a levantar, não lhes custava nada.
Os últimos três dias passei-os, assim, esperando a carta e descansando. Agora que tenho a carta bem à minha frente, já não sei se tenho coragem de a abrir. Opto por primeiro terminar a leitura do livro, buscando inspiração, buscando paralelismos, mas não resisto à curiosidade e pego na carta.
“Minha querida
Sei que nunca me irás perdoar o que te fiz, nem nestas linhas busco o perdão, não teria coragem de sequer o imaginar. Quero unicamente dar uma explicação, a ti e a mim mesmo.
Quando te conheci tinha a minha vida já traçada, planos delineados há muito tempo com prazos de concretização já estabelecidos. O tempo que passamos juntos foi intenso, mas não o suficiente para questionar tudo, para traçar novos percursos. Como tu sempre referiste, eu nunca me entregava integralmente, nunca perdia o controlo, fui assim contigo, fui assim com outras, sou assim com a vida, sou assim. Os meus objectivos sempre em primeiro lugar.
Podia ter-te pedido para continuares comigo, apesar do meu compromisso e quase sei que acabarias aceitando, mas gosto demasiado de ti para tal. Gosto demasiado de ti para te desejar uma vida meia vivida, feitas de encontros a meio da tarde, ou fugas para um lanche tardio. Gosto demasiado de mim, também, para me submeter a uma vida dupla. Sei que sou egoísta, falso, mentiroso, um cão (aqui tive ajuda na definição, não teria chegado lá sozinho, mas estas foram as palavras da última namorada quando me largou). Sei que caio repetidas vezes no mesmo erro, que abandono os propósitos estabelecidos à primeira dificuldade, por isso te escrevo esta carta.
Se me vires na rua não me cumprimentes, ignora-me.
Se te estender a mão, coloca lá uma moeda e segue em frente.
Se te aparecer à porta, não a abras. Se tiveres cão, solta-o.
Se eu te disser que estou arrependido, não me acredites.
Se te disser que estou só, é porque o mereço, não tenhas pena.
Esquece-me para assim esqueceres o quanto abusei da tua confiança, o quanto sei que te magoei.
Certamente esperavas coisa diferente desta carta, uma desculpa que justificasse o engano, mas não tenho imaginação que invente desculpas e minimize ressentimentos.
Que sejas muito feliz, é o que mais desejo, talvez assim se diminua a minha culpa.”
Aqui estava a carta, não era um pedido de desculpa como primeiro fantasiei, nem mesmo uma justificação. Mesmo o desejo final continua a ser egoísta, tu em primeiro lugar. Tens razão, toda a razão, se te vir na rua não te cumprimento, provavelmente nem te reconheço.
Pego no livro e esqueço a carta. Afinal a minha dor tinha ficado no cimo daquela colina, como eu me tinha convencido. Agora tinha que encher a alma com outras histórias até ter coragem para voltar a viver a minha vida, para perseguir de novo os meus sonhos.
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