quarta-feira, fevereiro 18, 2004

E ainda a carta...

III
Tento desligar-me de tudo à medida que me perco em caminhos estreitos e veredas, em traçados que nem aparecem vincados em nenhum mapa. No momento em que não posso mais seguir montada, paro o carro e sigo a pé. O meu desejo é perder-me de tudo, perder-me até da minha consciência. Mas é estranho, porque o que à distância julgávamos ser suficiente para que ninguém nos encontrasse, quando lá chegamos, parece que não é suficiente ermo, suficientemente distante, suficientemente deserto.

E não é deserto, não pode ser deserto, está contaminado pela minha presença. Mas mesmo assim sigo sempre em frente à espera de sentir um lugar dizer-me “é aqui” e então parar, e então deitar, sentir o peso do corpo que se transmite ao terreno, sentir o corpo e desligar a mente.

O caminho que sigo parece ter sido calcorreado por pastores e cabras, e não posso deixar de sorrir com o meu aspecto, salto alto no meio de um trilho cabreiro. Sento-me numa pedra na beira do caminho, começo-me a descalçar e a brincar com os pés na relva que já adquire aquela frescura húmida de final de tarde. Dobro as calças, e fico assim, com calças de ir regar. E de repente vem-me à memória os finais de tarde de verão, quando o sol já se pôs, mas o calor ainda se mantém, e ao voltar da praia encontrava a minha avó a regar o milho. Nessa altura fazia o que não seria capaz de fazer agora, andar descalça nos regos de terra, sentido os pés enterrarem-se na lama, fundirem-se com a terra.

Continuo descalça colina acima, o carro ficou já escondido atrás da última linha de vegetação. O desconforto inicial torna-se primeiro acomodação, depois prazer. Sinto-me leve. O dia de hoje tem o encanto desses dias passados, como se a recordação fosse uma neblina de luz que pinta a natureza. Quando fico assim, sozinha num espaço imenso de que não lhe adivinho limites, sinto que tudo perde a importância, as mágoas, os enganos, as traições.

Finalmente, no ponto mais alto da colina a terra grita-me, “é aqui” e eu obedeço. Deito-me, de pernas e braços afastados, olhos bem abertos fixando o céu. Sinto a humidade da relva penetrando a roupa, sinto a temperatura do ar que se cola à pele, escuto os sons da natureza. Vejo no céu, espirais semitransparentes que se afastam da terra. Sempre as vi, nunca soube se eram reais se uma partida dos olhos, de tanto fixar o azul do céu.

E penso, o que faço eu aqui, assim? De que fujo eu? De que é que eu tenho medo?

Lembro-me de uma frase de Anais Nin.
“… chorei porque perdi a minha dor e ainda não estava acostumada à sua ausência.”
A minha dor ficaria naquele espaço entre céu e terra. Não a levaria de volta comigo, não valia a pena.

Fiz o caminho de volta mas quem voltava não era quem tinha subido. Recolhi os sapatos junto à rocha, mas continuei descalça. Procurei as chaves do carro e não as encontrei. Verdade é que nem me lembrava de ter fechado o carro, nem me recordava do que fizera da carteira e do telemóvel.

Estava tudo no interior, chaves, carteira e telemóvel, tudo em cima do banco. Noutro local, nem o sítio onde deixara o carro teria encontrado, mas ali, só mesmo as cabras se poderiam ter aventurado a mordiscar o pára-choques, os retrovisores ou os piscas do carro.

O sol já se tinha posto e eu resolvi seguir viagem. Não sabia onde estava e convinha encontrar algum sítio onde pudesse comer e dormir.

Fazer luto por ti, ainda vá, agora dieta?
Não mereces tanto!

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